6 jogos de financiamento coletivo que deixaram os apoiadores na mão
Se você lê este blog regularmente, sabe que empresas de videogame sacaneando seus consumidores são um assunto recorrente por aqui.
Mas é claro que, em um mercado acostumado com multinacionais predatórias, os desenvolvedores independentes ainda se mantêm como um bastião intocável da ética e do apreço pelo que os games representam, certo? Neles a gente pode confiar, certo? Certo?!?
Bom, a verdade é que mesmo os indies às vezes pisam feio no tomate – uma pesquisa de 2015 apontou que 12% dos Kickstarters de videogame não conseguem entregar seu produto. Nesta lista, reunimos casos emblemáticos de campanhas de financiamento coletivo que prometiam mundos e não entregaram nem os fundos.
Deixamos de fora Star Citizen, o elefante branco que arrecadou US$ 230 milhões e está há 9 anos em desenvolvimento, porque já falamos dele na nossa lista de games empacados.
1) Project Phoenix
A história de Project Phoenix é tão complexa e convoluta que renderia um documentário excelente. Alô, Netflix, oportunidade de ouro aqui.
A campanha deste game entrou no ar em agosto de 2013 anunciando "o primeiro videogame japonês no Kickstarter" e "jogo indie japonês com talento AAA". O diretor seria Hiroaki Yura, um músico profissional que nunca havia comandado um jogo antes, mas havia sido estimulado por seus colegas a se arriscar na nova carreira. Quem iria cuidar da trilha seria Nobuo Uematsu, da série Final Fantasy.
Mas a grande estrela da equipe era "um dos principais programadores em Unity de todo o mundo" (anos depois, descobriria-se que esse programador anônimo era David Clark, responsável por Ori and The Blind Forest). Project Phoenix prometia unir o estilo dos JRPGs com a jogabilidade dos RPGs americanos. A paixão de Yura contagiou quase 16 mil apoiadores e o jogo arrecadou mais de um milhão de dólares.
Com o passar dos anos, três problemas se tornaram notórios. O primeiro é que a equipe de desenvolvimento havia se organizado em torno de David Clark e, com o sucesso de Ori, o americano já não tinha mais tempo para Phoenix. O pessoal da CIA (empresa de Yura responsável pelo game), em vez de contratar novos programadores, resolveu esperar Clark ficar disponível, o que nunca aconteceu.
O segundo problema é decorrente do primeiro. Em 2015, um update da CIA anunciou que o estúdio estava procurando programadores que trabalhassem com a engine Unreal. Ou seja: em vez da Unity, que havia sido anunciada na campanha, o jogo agora iria utilizar outra engine. Isso significava que todo o trabalho até ali teria que ser jogado no lixo.
Por fim, o problema mais previsível de todos: o dinheiro acabou. Para contornar a situação, Yura colocou sua equipe para trabalhar em Tiny Metal, um segundo jogo que foi incluído na agenda apenas como forma de gerar capital para a empresa e atrair investidores para injetar mais dinheiro em Phoenix.
Em novembro de 2017, Yura soltou um e-mail de update para os apoiadores e, entre outras coisas, disse o seguinte:
"Esta é a primeira vez que eu conto pra qualquer pessoa além dos meus amigos, mas eu estou passando por muita coisa com a minha vida pessoal e estou separado dos meus entes queridos no momento, e honestamente é uma das piores experiências da minha vida… e passando por uma provação extremamente dura. Ser malhado por apoiadores do Project Phoenix, os quais eu menti para e enganei, isso é uma coisa, já que eu entendo como algumas pessoas se sentem a meu respeito e honestamente, eu me sinto responsável e mereço o malho. No entanto, ser malhado quando você tenta realizar algo para manter uma promessa e está sacrificando tanto… perder minha família e, ao mesmo tempo, proteger as famílias dos meus funcionários é o maior desafio que já enfrentei na vida. Então, só esta vez, por favor olhe com carinho para o trabalho que fizemos. Tiny Metal é nossa única esperança. Com tão poucos recursos, muitos funcionários do Project Phoenix trabalharam para fazer um jogo simples e divertido e esse é o resultado. Se você gosta do que fizemos, por favor nos ajude, precisamos de toda a ajuda que conseguirmos. Não queremos seu dinheiro, só precisamos que você conte aos seus amigos e família."
Parece um desabafo honesto de um homem quebrado. Um homem quebrado, aliás, talvez literalmente, pois Yura supostamente injetou US$ 500 mil do próprio bolso em Project Phoenix. O jogo não foi oficialmente cancelado até hoje, permanecendo como uma eterna promessa.
2) Chronicles of Elyria
Este game já começou errado, pois ele foi anunciado em 2016 com promessa de entrega para dezembro de 2017. Ou seja: os desenvolvedores acreditavam que conseguiriam fazer um MMORPG inteiro dentro de um período de apenas dois anos.
Mas não era apenas um MMORPG. Chronicles of Elyria era um projeto ambicioso: neste game, você teria um personagem que envelheceria e morreria com o tempo. As missões seriam elaboradas e dadas pelos próprios jogadores, em vez de NPCs, e os recursos seriam finitos, exigindo que os jogadores interagissem entre si para administrá-los.. O mapa estaria sempre mudando. Em resumo, Elyria seria um mundo aberto com muito mais realismo e liberdade do que qualquer outro jogo já visto
A ambição impressionou o público, que doou nada menos do que US$ 1,3 milhão para a campanha. Mas isso foi só o começo: novas campanhas de arrecadação feitas pelo site do jogo nos anos seguintes levantaram mais dinheiro, trazendo o total para US$ 7,7 milhões. Alguns fãs chegaram a investir mais de US$ 10 mil no projeto.
Só que o tempo foi passando e os atrasos e comunicações esparsas da desenvolvedora foram deixando os fãs suspeitos. Todo o material divulgado do jogo era sempre simplório, com apenas personagens andando por cenários e sem mecânicas sendo exibidas.
Aliás, vale lembrar que o game foi divulgado com este visual:
E o vídeo pré-alpha publicado em março de 2020 tinha esta cara:
Também em março deste ano, o jogo foi cancelado e toda a equipe do estúdio foi demitida. No entanto, em abril, a equipe publicou um update na campanha do Kickstarter dizendo que o jogo continua sendo desenvolvido e, por isso, não está oferecendo reembolsos (cof cof golpe cof cof).
"Ninguém comprou Ferrari. Ninguém saiu para viajar pelo mundo com seu dinheiro. Todos os salários eram conforme o padrão para uma companhia do nosso tamanho", diz a atualização. Beleza, rapaziada, mas eram 8 milhões de dólares…
3) The Stomping Land
"The Stomping Land é um multiplayer de sobrevivência sobre dinossauros. Crie armadilhas, colete recursos, forme tribos". Essa descrição bem simples e objetiva sintetizava a página de campanha de The Stomping Land, que tinha um objetivo bem modesto: arrecadar US$ 20 mil.
Mas a campanha levantou quase seis vezes esse valor, garantindo uma das metas estendidas, que era "contratar designers temporários para ajudar a progredir com o conteúdo do jogo".
Rapaz, esses designers devem ter sido achados em alguma cesta de liquidação da Renner porque, olha, The Stomping Land é feio pra caramba. A versão alpha que foi lançada em 2014 (e retirada das lojas algum tempo depois) era uma bagunça em que você não tinha praticamente nada para fazer a não ser ficar tentando matar os dinossauros com armadilhas invisíveis.
Não era possível customizar seu personagem, você podia coletar madeira infinitamente de qualquer árvore, não havia como enfrentar os dinossauros corpo a corpo e os inimigos eram tão mal programados que eles basicamente ficavam correndo em círculos, torcendo pra trombar com você para poder te matar.
Sente o drama:
E essa versão custava 25 dólares, metade do preço de um jogo triplo A!
Em 2015, o jogo foi retirado das lojas e o trabalho nele foi encerrado. Na página da campanha no Kickstarter, os apoiadores estão pedindo reembolso até hoje.
4) Identity
A promessa de Identity era criar um MMO na sociedade contemporânea onde você poderia levar a vida que quisesse, escolhendo seu emprego e criando uma carreira para si. Não haveria NPCs – todos os outros personagens seriam outros jogadores tocando suas próprias vidas. Você poderia explorar um mundo aberto massivo e forjar uma identidade completamente personalizada.
Se você está achando que Identity é Chronicles of Elyria no século 21, bem, é porque é mesmo. Inclusive com problemas parecidos.
Identity arrecadou US$ 187 mil no Kickstarter em 2015 e, com financiamentos coletivos posteriores, conseguiu chegar a um total de US$ 1,6 milhão levantado. Mas os anos se passaram e nada de jogo. Até que, em 2019, para cumprir os termos do Kickstarter, os desenvolvedores soltaram um "early access" do game que basicamente consistia em andar com seu personagem por uma pequena praça urbana onde não havia nada pra fazer.
É claro que, a esse ponto, muitos apoiadores já sentiam o cheiro da picaretagem e pediam seus reembolsos de volta. Mas o pior ainda estava por vir.
Em 2020, o estúdio de Identity, Asylum Entertainment, soltou um comunicado em seu site dizendo que havia sido procurado para atuar como distribuidor de um jogo para celulares chamado Furballs. Esse jogo também estava no Kickstarter recebendo financiamento coletivo. Todo o dinheiro que a Asylum ganharia com a distribuição de Furballs, dizia o comunicado, seria injetado na produção de Identity. Por isso, eles pediam aos apoiadores de Identity que também financiassem Furballs.
Essa história já era suspeita porque, afinal, eles basicamente estavam pedindo para o público colocar mais dinheiro em campanha de crowdfunding para receber um jogo que já havia sido financiado. Só que, aí, os fãs descobriram que o estúdio que produziu Furballs pertencia ao dono da Asylum, sendo que a Asylum havia dito com todas as letras em seu comunicado que não estava envolvida no desenvolvimento de Furballs. Ou seja, mentiram para conseguir mais dinheiro.
Pelo amor do senhor Jesus, os caras até mesmo tiveram a cara de pau de chamar o estúdio de Furballs de "Phony Games" (em inglês, phony = falso ou pilantra).
Talvez a gente precise ser mais compreensivo com a Asylum. Talvez esse estúdio indie esteja cheio de gente bem intencionada tentando fazer contenção de danos após perceber que prometeram mais do que podiam cumprir. Mas, caramba, são mais de 4 mil apoiadores esperando o tal do jogo até hoje.
5) The Dead Linger
Muita gente ainda lembra de The Dead Linger como a primeira vez em que o sonho de "videogames do Kickstarter" desmanchou-se como um sorvete em dia de verão com queimada no Pantanal.
O jogo, que arrecadou US$ 155 mil no Kickstarter em 2012, prometia um mundo aberto com mapas gerados proceduralmente (criados aleatoriamente por algoritmos a cada jogada) onde você tinha que sobreviver em meio a zumbis famintos. Para um planeta que já vivia a abstinência de Left 4 Dead, era uma ótima pedida.
Só que a produção foi marcada por problemas. A engine começou em Ogre3D, passou para Unity e terminou em Unreal 4 – com esta última mudança, os mapas procedurais, que eram um dos grandes atrativos do jogo, tiveram que ser eliminados. O jogo foi parar na Steam em 2013 em "early access", porém cheio de bugs e longe do que foi prometido.
Após alguns patches, Geoff Keene, fundador do Sandswept Studios, responsável pelo projeto, publicou um post no site oficial em 2015 informando que o jogo havia sido cancelado.
Entre os problemas citados, Keene citou a má fama que o estúdio ganhou na mídia após alguns ex-funcionários revelarem que não estavam recebendo salário pelo jogo. Keene disse que, apesar de a situação não ser ideal, ela era o que o orçamento permitia. Segundo ele, todos os funcionários foram informados sobre a questão financeira de antemão, ou seja, ninguém foi enganado.
A bem da verdade, é muito comum em projetos indie que os envolvidos trabalhem de graça e/ou por amor. Não é uma indústria fácil.
The Dead Linger permanece morto e enterrado, mas Keene foi trabalhar na desenvolvedora e distribuidora New Blood Interactive, que continua fazendo jogos até hoje.
6) Raw
Anunciado em 2019, Raw seria um MMORPG em que você poderia ser e fazer o que quisesse na cidade. Nós não vamos explicar isso pela terceira vez porque, sim, é o mesmo conceito de Chronicles of Elyria e Identity. O que o trio tem em comum? Os três acharam que estavam reinventando a roda e os três fracassaram.
No caso de Raw, a coisa foi ainda mais estranha porque o Kickstarter suspendeu a campanha do jogo na véspera de sua conclusão. O motivo alegado era que o Killerwhale Studios havia violado os termos de "honestidade e transparência" do site por dizer em seu FAQ que o dinheiro da campanha não seria suficiente para completar o jogo e que mais fundos precisariam ser levantados depois em uma nova campanha no IndieGoGo.
Revoltada, a Killerwhale anunciou no Twitter que iria levar a campanha de fundos principal do jogo para o IndieGoGo, mas… não levou. O tal novo crowdfunding de Raw nunca apareceu e a desenvolvedora sumiu das redes sociais e não deu mais notícias. Seu site oficial também saiu do ar.
Como a campanha do Kickstarter foi cancelada antes do prazo final, os US$ 200 mil obtidos pelo financiamento não foram debitados e nenhum apoiador foi lesado. Ficou só a estranheza causada por um jogo que prometia gráficos lindos e interatividade fantástica e de repente desapareceu.
BÔNUS: Ouya
Este aqui não é jogo, mas vale a menção. O Ouya tinha uma proposta ambiciosa: era um console que permitia jogar os games de Android na sua TV. A biblioteca de jogos, portanto, além de ser enorme desde o começo, teria vários títulos gratuitos. A campanha foi lançada em 2012 e angariou US$ 8,5 milhões entre mais de 60 mil apoiadores empolgados.
No fundo, o que o Ouya prometia em seu marketing era, literalmente, uma revolução. Ele custaria muito menos do que os concorrentes, seria um sistema fácil de se desenvolver para, teria apelo com os jogadores casuais e representaria um refúgio indie para quem estava cansado de se submeter a Sony, Nintendo e Microsoft.
Os problemas começaram quando chegou a data de entrega. Muitos apoiadores só viram seus Ouyas chegarem depois que o console chegou às prateleiras dos varejistas (algo que foi prometido que não aconteceria). Com o aparelho em mãos, a imprensa fez reviews massacrantes, considerando o hardware de segunda mão e o software incompleto.
Conforme deu para perceber, a empresa por trás do Ouya superestimou o próprio produto. O Ouya que foi lançado ainda era um console em desenvolvimento, que tinha criado hype, mas não havia cativado desenvolvedores o suficiente para criar para a plataforma, o que minguou a promessa de exclusivos (última cartada da empresa). Em meses, todo o buzz em volta do Ouya havia morrido.
A Razer comprou os ativos do Ouya, descontinuou o hardware em 2015 e manteve as contas e serviços da plataforma até 2019, quando foram encerrados também. E assim morreu a promessa de uma revolução.
E você? Já foi deixado na mão por alguma campanha de financiamento coletivo?
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